Depoimento de um Portoalegrense.
Por Rafael Escuros
A concentração para a manifestação em apoio aos ciclistas atropelados em Porto Alegre, no Largo Zumbi, estava marcada para as 18h30 do dia 1° de março, mas às 17h já havia gente por lá, fazendo cartazes, preparando as bicicletas, conversando. Passei por lá com mais um companheiro, estávamos na rua desde cedo, pois na manhã houve uma atividade de protesto quanto ao dia internacional da mulher, e era possível ver o movimento de ciclistas pelas ruas da Cidade Baixa, também movimento de pessoas conhecidas, militantes de movimentos, de partidos, todos se encaminhando para o protesto. Há tempos os cidadãos dessa cidade não se mobilizavam espontaneamente, de maneira massiva, como nesse dia. Puxando pela memória, vem as imagens do impeachment do ex-presidente Collor, em 1992. As manifestações contra o governo Collares e o seu calendário rotativo também foram fortes naqueles anos iniciais da década de 90. Depois, as concentrações dos movimentos populares, sindicais e estudantis até o fim dos 90, também não eram pequenas, as marchas dos sem, os gritos dos excluídos, as jornadas de lutas. Ainda lembraria, com muita alegria e saudades, da manifestação contra as comemorações de 500 anos do Brasil, do grupo RBS de comunicação. Porém, o ocaso das manifestações populares de protesto em Porto Alegre, mais ou menos, coincide com as vitórias eleitorais do PT, curiosamente ou não.
Foi um protesto realmente bonito e é triste que tenha sido motivado por tão sórdido acontecimento como o atropelamento em massa, covarde, dos ciclistas que em toda última sexta-feira do mês se reúnem no protesto Massa Crítica de Porto Alegre. Protesto de conhecida origem e caráter libertário, organizado por companheiros e companheiras, principalmente na Europa e, então, no Brasil. Em Porto Alegre, já acontece há um bom tempo e, depois dessa desgraça, parece que vai ganhar um justo reconhecimento. Isso porque há muitas coisas envolvidas nessa questão, muito mais do que a estúpida dualidade que a mídia começa a fazer: bicicletas X carros. A estúpida mídia gaúcha, de pensamento binário, onde tudo no mundo é como uma disputa Grenal. Logo depois do atentado perpetrado pelo alto funcionário do Banco Central, Ricardo Neis, os meios de comunicação desse estado, o mais reacionário do país, se apressaram em colocar a versão do maníaco no ar, de “legítima defesa”. Além de pronunciamentos de burocratas da empresa de trânsito, dizendo que a manifestação “não tinha sido avisada, o que a tornava irregular”. Ou seja, para a mídia provinciana, a culpa era dos atropelados. A (in)justiça gaúcha também tem o seu dedinho nesse episódio de tentativa de absolvição do crápula, quando o libera para responder o processo em liberdade. Essa situação começa a mudar, consideravelmente, com a repercussão que o caso começa a ter nacionalmente e com as manifestações dos ciclistas na cidade de São Paulo.
Parecia que toda a cidade só precisava de um aceno, um sinal, um lugar para ir, e, quando os organizadores divulgaram o dia, a hora e o local, lá estavam centenas de porto-alegrenses. Todos se tocaram, se comoveram, com o caso. As imagens da atrocidade cometida pelo motorista retumbavam nas mentes de cada um. Divulgadas por internet e pela TV, não houve quem não se indignasse. E aí, temos, talvez, um aprendizado para tirar. Quem viu a imagem do sem-terra Elton Brum sendo baleado covardemente pelas costas por um assassino uniformizado da Brigada Militar? Quem se comoveu com esse fato? Pouca gente. As imagens são muito importantes nesses nossos tempos modernos ou pós-modernos ou como queiram chamá-lo. Parece que as câmaras digitais e celulares, mais do que nunca, devem ser nossas armas nas ruas.
O protesto contou com uma participação espontânea, as pessoas apareciam com cartazes feitos por elas próprias, vinham fantasiadas, as bicicletas retorcidas no atropelamento também foram levadas para o ato. Era possível ver muitos capacetes para ciclismo reluzentes de novinhos em algumas cabeças, provavelmente recém-comprados em alguma loja de artigos esportivos, principalmente nas de alguns militantes partidários. Porém, o ato não foi encampado ou colonizado por nenhuma força política, havia alguns parlamentares que foram lá para dar o seu “ar-da-graça”, mas destoavam tanto do resto das pessoas que, aparentemente, apertaram algumas mãos e foram embora. Foi o mesmo caso dos porcos fardados, apareceram no começo da concentração depois não se os via mais. Isso, para quem estava acostumado com os tempos de Yeda e coronel Mendes, chamava muito a atenção. As pessoas ocuparam as ruas, totalmente, no início da marcha, era tanta gente que não dava para liberar via alguma para os carros e, nem por isso, se escutou alguma buzinada, nenhuma agressão, ninguém se feriu ou se xingou. Isso nos mostra que os fardados, de fato, não servem para coisa alguma, e, se tivesse havido qualquer tumulto, teria sido provocado por eles próprios, como sempre o é.
Foi apenas o ato covarde do motorista maníaco que levou todos às ruas? Meu chute é que não. Há muito tempo a população está desgostosa com essa cidade. São vários os problemas e o transporte talvez seja um dos maiores. Recentemente se teve um aumento de vinte cinco centavos na passagem de ônibus, pulando de R$ 2, 45 para R$ 2, 70. Os atrasos são constantes, os ônibus lotados. Além disso, pessoas são eletrocutadas em paradas de ônibus, o serviço de saúde foi entregue para a iniciativa privada pelo prefeito (in) Fortunati, substituto do eleito Fogaça, que abandonou o mandado para perder a eleição de governador. Bom, já havia muito descontentamento. E era grande. E continua. O atropelamento foi um estopim Alguém vai dizer que a manifestação tinha um perfil mais de população classe média e, talvez, isso seja verdade, mas, será que um ato de covardia tem uma classe? Fica essa questão pra quem quiser refletir.
O fato é que as pessoas estavam ocupando o lugar “natural” da contestação: a rua. É lá que todos os que têm algo a dizer devem estar. Como já se disse em materiais pela internet, a rua não é da EPTC (Empresa Pública de Transporte e Circulação), a rua não é dos carros, a rua é do povo! E não precisamos pedir licença para ocupá-la. Nesse dia, recobrei um pouco, um poquinho, um velho orgulho de ser porto-alegrense que tinha, se coisas assim se repetirem e o povo da minha cidade aprender a contestar o sistema nas ruas, quem sabe, recobro o orgulho por completo. Quem sabe, o povo vá pras ruas a cada aumento de passagem, a cada caso de corrupção política, a cada caso de brutalidade policial.
A palavra de ordem dos ciclistas, “um carro a menos”, dizia muita coisa. Menos carros, menos poluição, menos recursos naturais extraídos, menos água para lavagem, menos estresse, menos velocidade, menos consumismo, menos agressão, menos morte, menos fascismo. Outra maneira de encarar a vida, outra relação com seu semelhante, outro modo de usufruir da cidade.
Por Rafael Escuros
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