domingo, 6 de março de 2011

MEMORIA,JUSTIÇA E VERDADE

Segredos da ditadura: Espanha tenta recuperar os bebês roubados no franquismo

Em agosto de 1938, o psiquiatra Antonio Vallejo Nágera recebeu um telegrama de Francisco Franco (1936-1975). "Conforme sua mencionada proposta, autorizo a criação do gabinete de investigação psicológica, cuja finalidade primordial será investigar as raízes genéticas do marxismo", escreveu o general ao médico, formado na Alemanha nazista. Convicto de que a ideologia marxista estava ligada a deficiências mentais, a solução parecia óbvia para o funcionário da ditadura franquista: era preciso separar os bebês de seus pais republicanos rojos, (vermelhos, em português).

O objetivo era evitar a propagação das ideias de esquerda, consideradas um mal pelos nacionalistas espanhóis. Naquele momento, a Espanha criava uma infraestrutura de repressão, e um dos pilares era a separação dos filhos de seus pais opositores. Trinta e cinco anos após o fim do regime, pais, mães, filhos e irmãos lutam para encontrar aqueles que foram vendidos ou entregues com documentos falsos para adoção. Ainda é difícil precisar quantas pessoas foram adotadas ilegalmente, mas o número de vítimas do roubo de bebês pode variar entre 30 mil a 114 mil, segundo estimativas do juiz espanhol Baltasar Garzón e da ONG Anistia Internacional.

Wikimedia Commons

Franco (terceiro da esquerda para direita) ao lado de Heinrich Himmler, um dos mais poderosos comantes nazistas, em 1940

A ditadura acabou há mais de três décadas, mas os desafios para tentar encontrar a irmã gêmea, roubada após o parto em uma clínica em Madri, são muitos, afirmou ao Opera Mundi Mar Soriano, nascida em 1964. "Não pensamos na política, mas em encontrar nossos irmãos. A luta hoje é pelo reconhecimento público, que o Estado se responsabilize pelos desaparecidos, dados como mortos", disse Mar, presidente da Plataforma Niños Robados, grupo que busca os desaparecidos.

Conforme conta a espanhola, os funcionários do hospital disseram aos pais dela que Beatriz, a irmã gêmea, havia morrido devido a uma otite e que não poderiam ver o corpo. Anos depois, os pais das gêmeas questionaram o atestado de óbito junto a outro médico do hospital madrilenho, que refutou as chances de a menina ter falecido por causa de uma simples inflamação nos ouvidos. Em 1997, Mar teve a constatação de que a história da irmã não era verdadeira durante uma viagem para a Alemanha, onde participou de uma conferência.

Leia mais:
Justiça da Espanha investigará casos de bebês roubados durante o franquismo
Hoje na História - 1936: Franco assume comando de governo nacionalista na Espanha
Especial: Memórias do passado de terror
Esma: Por dentro da escola de tortura argentina
Videla assume culpa por crimes na ditadura argentina
Manifestantes pedem fim da impunidade e apóiam Garzón
Juiz espanhol será julgado por investigar guerra civil espanhola e franquismo

"Um homem começou a falar comigo em alemão e eu não o entendi. A tradutora me explicou que ele tinha certeza que eu era de uma família conhecida. O homem insistiu, forneceu detalhes e, de repente, concluí que ele estava falando da minha irmã”, contou Mar. Após se recuperar do choque, ela tentou entrar em contato com o homem, sem sucesso. Após os dois episódios - o questionamento da causa da morte da irmã e o relato do alemão -, ela se deparou com vários casos como o seu e, aos poucos, criou a Plataforma Niños Robados.

“Minha vida mudou muito. A sensação de roubo sempre esteve em minha família e depois, descobrimos que a minha irmã está viva em algum lugar do mundo”, disse Mar. Ela não perdeu as esperanças de encontrar Beatriz.

Em busca do gene vermelho

O telegrama recebido em agosto de 1938 pelo psiquiatra Antonio Vallejo Nájera continha a resposta para uma mensagem enviada ao general Franco: "Temos agora um momento único, em que é possível comprovar cientificamente que a simplicidade do ideário marxista e a igualdade social pela qual ele luta favorecem a assimilação pelos deficientes mentais".

Chefe dos Serviços Psiquiátricos Militares durante os primeiros anos da ditadura franquista,Vallejo ficou encarregado de demonstrar a inferioridade mental das pessoas simpatizantes de ideologias de esquerda. Uma das conclusões de seu estudo foi a "separação destas pessoas [de esquerda] desde a infância poderia libertar a sociedade desta praga tão terrível".

A tese do médico condizia com a ditadura espanhola. Ideologicamente baseados no fascismo, os franquistas acreditavam na existência de uma "raça hispânica pura e superior" e perseguiram republicanos, comunistas, anarquistas e trotskistas. Pessoas que agissem contra a forte moral católica do regime também deveriam ser punidas. Por essa razão, muitas mães solteiras também foram vítimas de roubo de bebês.

"Havia uma clara vontade de alterar a genética, de fazer uma limpeza ideológica. O regime agiu sobre um grupo de mulheres indefensas, encarceradas que, por razões óbvias, não tinham condições de contestar o roubo dos filhos", explicou o sociólogo Francisco González de Tena, autor do livro Niños invisibles em el cuarto oscuro, que aborda o tema.

Wikimedia Commons

Homenagem aos prisoneiros políticos do centro de detenção de Carabanchel, na capital espanhola
Entretanto, na avaliação do presidente da Anadir (Associação Nacional das Vítimas de Adoção Ilegal) Antonio Barroso, os roubos não têm "relação com a política ou com Franco", pois muitos bebês eram vendidos. Além disso, as datas dos crimes coincidem com o período em que as espanholas desenvolveram o hábito de ter seus bebês em hospitais.

A Anadir é outra instituição civil espanhola que trabalha na procura de bebês desaparecidos. Ela começou a funcionar em fevereiro de 2010, mas a iniciativa surgiu meses antes, quando Barroso descobriu que era uma vítima. "Tudo sobre mim era falso", disse. Segundo o espanhol, seus pais revelaram há três anos que ele havia sido comprado ainda bebê e que não tinham qualquer informação sobre os pais biológicos. Ele então empreendeu uma busca pela identidade, sem sucesso.

"A principal dificuldade hoje é a falta de colaboração, principalmente dos hospitais, que dificultam a entrega de documentos. Não há resistência, mas também não há ajuda", disse Barroso, de 39 anos.

Estrutura legal

Nos primeiros anos do franquismo, a Espanha alterou as leis relacionadas à adoção, tornando legítima a adoção ilegal. Uma das medidas foi a criação, em 1941, de uma lei que permitia ao Estado mudar o sobrenome dos filhos de presos, mortos ou desaparecidos durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939).

Foi estabelecido também que o Ministério de Justiça tinha a responsabilidade de cuidar dos filhos dos assassinados, encarcerados ou desaparecidos, na tentativa de "recuperá-los". Em 1943, havia mais de 12 mil filhos de republicanos sob tutela estatal. Os bebês adotados poderiam ser registrados como filhos biológicos e os hospitais não precisavam comunicar as autoridades sobre os casos de adoção, conforme determinava a Constituição espanhola até 1987. Após essa data houve uma reforma legislativa. "É um problama de saúde também. O Estado apagou o DNA dessas pessoas, as heranças genéticas são desconhecidas" disse Mar Soriano. 

Algumas crianças eram entregues ou vendidas, outras eram enviadas para instituições comandadas pela Igreja Católica.

Busca pela identidade

Apesar de estarem empenhadas na mesma causa, a Plataforma Niños Robados e a Anadir não trabalham juntas, pois discordam sobre a forma de financiamento para as buscas. A organização liderada por Mar é contra a participação da iniciativa privada nos projetos, defendida por Barroso e exige a aplicação de capital do Estado no projeto. Eles concordam, porém, que os obstáculos são os mesmos.

Leia também:
Fundadora das Avós da Praça de Maio luta para encontrar neta sequestrada há 35 anos
Argentina começa a julgar acusados de roubo sistemático de bebês durante a ditadura militar
Ex-chefe do exército argentino morre sem ser julgado por roubo de 33 bebês
Argentina: justiça anuncia novos passos para investigação do DNA de herdeiros do Clarín
Quem são os herdeiros do grupo Clarín? Veja a cronologia do caso

Recentemente, o ministro de Justiça, Francisco Camaño, comprometeu-se a coordenar as investigações e garantiu que designará um promotor especial para investigar a causa, além de criar um banco estatal de registros de DNA para que as famílias possam fazer comparação de dados genéticos e localizar seus familiares, como acontece na Argentina.

A Anadir já possui um banco de DNA privado, montado com financiamento do próprio grupo. Mar comemorou a promessa do ministro de Justiça. “Conseguimos acesso ao banco de DNA. Gratuito, como deve ser”, ressaltou ela.

Atualmente, 743 pessoas já procuraram a Anadir e o número é crescente - triplicou no último mês. Para Barroso, o fato de o governo reconhecer a existência desses crimes explica o aumento. “Muitas mulheres tinham medo de se passarem por loucas”, explicou.

Há cerca de três meses, aconteceu em Barcelona o primeiro caso de reencontro entre mãe e filha separadas durante a ditadura franquista. Quando ainda era recém-nascida, a menina, hoje com 41 anos, foi roubada na maternidade e entregue ilegalmente para adoção. Para a mãe foi dito que a criança havia morrido no parto.

Nenhum comentário: