Corrupção policial foi o estopim para os ataques do PCC, diz relatório
Segundo coordenador do relatório “São Paulo sob achaque”, corrupção policial foi o estopim dos Crimes de Maio e continua a existir na polícia paulista
10/05/2011
Aline Scarso,
O conflito entre partidários do Primeiro Comando da Capital (PCC) e a polícia paulista entre os dias 12 e 20 de maio de 2006 terminou com uma chacina de civis que assustou a população e deflagou uma crise de segurança sem precedentes no estado de São Paulo. Ao todo, 493 pessoas foram assassinadas na capital, litoral, interior e região metropolitana.
Passados cinco anos, foi lançado nesta segunda-feira (9) o relatório “São Paulo sob achaque: corrupção, crime organizado e violência institucional em maio de 2006”, principal estudo já publicado sobre os crimes. Ele indica que a corrupção policial foi o estopim para os ataques e que o governo paulista sabia dos planos do PCC. Além disso, segundo a pesquisa, dos 493 homicídios, 122 execuções apresentaram participação de policiais militares. A maioria dos crimes não foram sequer investigados. Muitas das vítimas atendiam ao esteriótipo do que os policiais costumam chamar de “bandido”: jovens, negros, tatuados, alguns com passagem pela polícia.
O estudo foi realizado pela ONG de defesa de direitos humanos Justiça Global e pela Clínica Internacional de Direitos Humanos da Faculdade de Direito de Harvard, uma das mais importantes dos Estados Unidos. Um dos coordenadores do documento, Fernando Delgado, conversou com o Brasil de Fato sobre os resultados da pesquisa.
Brasil de Fato: O que relatório traz de novo em relação ao que já foi divulgado sobre o período?
Fernando Delgado: O relatório traz uma confirmação importante sobre o papel da corrupção policial na deflagração da crise. Tivemos acesso a um inquérito policial sobre o sequestro em 2005 do enteado do Marcola (Marco Willians Herbas Camacho, considerado pela polícia como chefe do PCC), que teria sido praticado por policiais civis (Augusto Peña e José Roberto de Araújo). O próprio delegado que apurava o crime naquele período aponta que há fortes indícios de que esse evento teria sido a causa da deflagração da crise de 2006. Isso é um fato. O outro fato é a sistematização da análise das mortes praticadas por policiais. São 122 casos que nós identificamos com indícios de execução praticada por policiais.
Por que a polícia executou tantas pessoas? Vocês descobriram se ela teve ordem do Estado para matar qualquer um que apresentasse qualquer sinal de suspeito?
O que foi passado dentro da polícia é uma investigação que ainda precisa ser feita. E isso só pode ser feito por uma instituição fora do estado, ou seja, o governo federal. O que encontramos é que há um padrão das mortes. Supostos grupos de extermínio seguiam determinado modus operandi em várias partes das grandes cidades paulistas.
Bom, nós identificamos 71 casos com semelhanças. Na época, houve um toque de recolher extra-oficial realizado por policiais, após o fim dos ataques letais do PCC, em que avisavam a população para não ficar nas ruas depois certa hora, porque haveria um revide. Após o aviso, houve uma escolha dos mortos por parte da polícia e a grande maioria dos que morreram foram jovens negros das periferias das cidades, pessoas que tinham tatuagem, algumas que tinham passagem pela polícia. Ou seja, existia um perfil. Encapuzados chegavam, faziam os disparos e retiram suas capsulas. Logo em seguida, policiais passavam novamente retirando os corpos das vítimas.
O que vocês descobriram sobre a relação do PCC com a Polícia paulista?
A pesquisa originalmente não estava apurando a corrupção. Esse foi um fato que nos deparamos ao longo da pesquisa e achamos que era necessário abordar esse tema, até porque era uma grande motivação para parte da violência. Quando fomos conversar com promotores especializados em crime organizado, eles falaram que a corrupção era realmente um problema fundamental para o funcionamento do crime organizado.
O relatório diz que o Estado falhou ao realizar acordos com facções criminosas para gerir o sistema prisional. Que acordos seriam esses?
O teor desses acordos o estudo não detalha. O que percebemos – e, inclusive, isso foi evidenciado pela pastoral carcerária, que acompanha o sistema prisional de perto - é que os indícios de controle do PCC no sistema prisional permanecem. Fizemos uma visita a unidade prisional Avaré I, local onde teve a primeira rebelião dos ataques de maio, e percebemos claramente indícios de que era uma unidade controlada pelo PCC. Havia, por exemplo, diferenças entre as falas de presos, que eram muito distintas. Ou seja, aqueles presos que estavam no castigo e eram desprezados dentro daquela ordem interna relatavam muitas queixas. Já os presos que estavam no regime normal, em grande parte não relatavam. Com nossa experiência no sistema prisional, sabemos que isso é muito raro. Há um entendimento que o PCC controla a disciplina dentro das prisões, de forma geral, e em troca há certas privilégios que são dados aos líderes da facção.
Vocês destacam no relatório que, além da corrupção, outros elementos que motivaram os Crimes de Maio foram as condições degradantes nos presídios e a violência policial. Tomando isso como base, é possível que um novo Maio de 2006 volte a acontecer?
Sim, é possível infelizmente. Não temos as respostas completas do que aconteceu em maio de 2006. Por exemplo, o conteúdo da delação premiada do policial Augusto Peña, principal acusado do sequestro do entiado do Marcola, não é conhecida. Então, nós não temos noção da totalidade dos bastidores que levaram aos Crimes de Maio de 2006. Então é muito possível, e até provável, que a população de São Paulo volte a enfrentar as consequencias da corrupção nos bastidores. Falta à população muita informação, até porque não houve uma investigação unificada, completa e transparente publicada pelo governo do estado.
E por que, na avaliação das organizações envolvidas na realização desse relatório, o governo paulista até hoje não elaborou um documento oficial sobre investigações?
Isso foi uma pergunta que fizemos para várias instituições e não obtivemos uma resposta adequada. É um passo óbvio a se tomar, mas que não foi dado. O porquê infelizmente eu não sei dizer, mas deve ser falta de vontade política. Gostaria de destacar que estamos chamando a atenção do governo federal pois está na hora das diferentes instituições da União assumirem o seu papel e fazerem essa investigação de forma direta. Existem meios constitucionais para isso. Se não chegarmos a ter isso, teremos que pensar em denúncias internacionais para responder à demanda das famílias das vítimas de maio de 2006.
Leia o relatório aqui:
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