quinta-feira, 14 de junho de 2012

“A meta da Rio+20 é privatizar as decisões que deveriam ser dos estados e governos”

Posted: 05 Jun 2012 01:38 PM PDT
Por José Coutinho Júnior, do site oficial do MST
Para Iara Pietricovsky, antropóloga e integrante do conselho de gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), a sociedade civil precisa estar atenta e mobilizada em relação aos debates na Conferência da Rio+20, pois conceitos importantes tratados e definidos na Rio92 podem estar ameaçados. Confira a entrevista que Iara concedeu à Página do MST.
A Rio+20 é uma consequência da Rio92. Quais são as principais diferenças no caráter político e na conjuntura em que as Conferências se realizam?
Em 1992, nós estávamos no ápice do neoliberalismo, e ideias como a privatização e o Estado mínimo estavam sendo aprofundadas. A conferência de 1992 foi um contraponto a esses ideais, mostrando que existiam outras coisas importantes que deviam ser consideradas, como os direitos humanos e a sustentabilidade ambiental.
A Rio92 desorganizou essa lógica neoliberal que assolava o mundo naquele momento. Vinte anos depois, estamos vivendo num mundo onde os paradigmas do neoliberalismo estão em crise. Em 92, ao pensar nos pilares social, econômico e ambiental, se desenvolveu princípios como o de responsabilidades diferenciadas entre os países, cuja ideia é que os países poluidores são os maiores responsáveis pela crise ambiental e, portanto, devem arcar com esta responsabilidade. Além de uma série de marcos regulatórios e princípios jurídicos internacionais ratificados por meio de tratados e convenções, que são fundamentais.
Hoje é o oposto. Estamos num mundo em crise, com os países e seus governos fragilizados, as corporações estão extremamente fortalecidas, pressionando e destituindo os estados de seu papel regulador e mediador.
Como conseqüência desse processo, a Rio+20 está diluída, pois o que foi constituído ao longo dos anos e conferências em relação aos direitos humanos está sendo reduzido. Ou seja, vivemos em tempos muito mais complexos e muito mais complicados, portanto é necessária maior consciência e ação política por parte dos cidadãos, organizações políticas e movimentos sociais em torno do que está se deliberando na Rio+20.
Em relação às metas da Rio92, o que foi cumprido até hoje?
É difícil dizer. Há uma série de leis e marcos legais que foram regulamentados. Hoje há o princípio das Responsabilidades Comuns, Mas Diferenciadas, fundamental para envolver, discutir e obrigar os países desenvolvidos a mudar seu padrão de produção e consumo, além de iniciativas e experiências do ponto de vista do desenvolvimento de tecnologias, da compreensão da necessidade de uma mudança de padrão no mundo.
Mas efetivamente, uma alternativa a essa forma de produção capitalista baseada em recursos naturais de forma infinita continua existindo na prática até hoje. E isso é o maior dos desafios que temos hoje na sociedade planetária. Se não nos mobilizarmos massivamente no sentido de mostrar tanto às corporações e transnacionais quanto aos governos – que vem respondendo mais aos interesses corporativos do que da dignidade humana das populações -, vamos perder um momento importante e transcendente para fazer essa reflexão de modelo de paradigma e desenvolvimento.
Nesse ano expira o protocolo de Quioto. Qual a sua avaliação dos resultados do protocolo?
A renovação do protocolo está sendo questionada. O protocolo essencialmente afirma as Responsabilidades Comuns, Mas Diferenciadas, ao dizer que os países ricos têm de pagar essa conta, pois eles foram e são os maiores predadores ambientais. Há também o debate de transferência de tecnologia: não é só acessar a tecnologia, é transferir, quebrar a lógica das patentes.
O que acontece é que nenhum país desenvolvido quer assumir essa responsabilidade. Essa força política que não quer renovar o protocolo quer partir para outro acordo que responsabilize em igual medida os países em desenvolvimento, o que configura uma inversão de valores e da responsabilidade histórica que os países desenvolvidos têm.
É fundamental que se aprove a renovação do protocolo. Assim como é fundamental que as metas de desenvolvimento sustentável que estão sendo propostas na Rio+20 peguem os países ricos. Eles têm de começar a mudar radicalmente e a pagar a conta. Não que nós não tenhamos responsabilidade, mas eles são os maiores responsáveis: o padrão de consumo e produção predatório é realizado em grande parte pelos países ricos.
Que metas de desenvolvimento sustentável são essas?
Essas metas são propostas de desenvolvimento que nasceram da Colômbia, mas que foram rapidamente aplaudidas pelos países ricos. São metas que pretendem substituir as Metas do Milênio, que fracassaram. Só que para essas metas serem efetivas, elas tinham que estar atreladas a um conteúdo diretamente relacionado aos princípios da Rio92, ou seja, o princípio do país poluidor-pagador, da precaução, que são princípios básicos. Todos os tratados que foram derivados da Rio92 estão atrelados a estes princípios.
O que as metas propostas hoje querem nesse momento é o contrário: estão retirando esses direitos, transformando essas metas em projetos de longo prazo, cujo exemplo maior é a proposta de dobrar a energia limpa do mundo. Ora, a energia limpa do mundo hoje corresponde a 4% do total. Em 2030, se dobrar, vamos para 8%. Isso não é nada.
Não se fala de transferência de tecnologia também. As metas, agora, são assim: em relação ao acesso universal a água, os governos estão sendo incapazes de garantir este direito. Então o conceito de universalização do direito a água da margem para se colocar metas pausadas, e quem vai realizar essa meta são os parceiros prioritários, através das parcerias público-privadas, nas quais o setor privado será o maior realizador dessas metas. As metas da Rio+20 privatizam as decisões que deveriam ser realizadas pelos estados e seus governos.
Aparentemente, há duas agendas, a dos países desenvolvidos e a dos subdesenvolvidos e em desenvolvimento. Há posições conflitantes na agenda destes países?
Sim. O Estados Unidos não é um país signatário de nenhum tratado internacional. Com isso ele joga o jogo mas não se compromete com nada. Ele não quer direito humano algum, ele quer uma declaração simples, sem nenhuma obrigação. A Europa, por conta dessa crise absoluta, está numa posição defensiva; o Japão está em crise por causa dos terremotos, mas ele tem resoluções internas importantes na questão da sua sustentabilidade, mas não querem compartilhar isso com o mundo. Eles também rejeitam tudo que diz respeito aos direitos humanos.
O G-77, grupo de países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, do qual o Brasil faz parte, além de países africanos, árabes e da América Latina, é o grupo que está batalhando para reafirmar os tratados e convenções que foram aprovados desde a Rio92. Há contradições, inclusive dentro do Brasil, mas o fato é que esse conjunto de países tem uma defesa mais pró-ativa em relação à questão dos tratados e dos direitos.
Você acredita que a Rio+20 vai conseguir avançar na criação de algum modelo efetivo para enfrentar as crises que vivemos?
A Rio+20 vai ser importante por colocar na agenda mundial novamente esse debate. O documento oficial vai ser fraco, ele vai simplesmente introduzir essas metas do desenvolvimento sustentável e dar uma agenda para o futuro. É preciso brigar para que os princípios e convenções da Rio92 permaneçam. Lutar para que todas as instâncias e capítulos sejam vinculados ao tema dos direitos humanos, econômicos, culturais, que foram constituídos ao longo destas últimas décadas.
Se isso não for feito, esse documento não vai ter poder nenhum de transformação. Mesmo assim, eu acho que este debate, nesse momento de crise mundial é fundamental, porque é a maneira que os movimentos sociais, as organizações de cidadãos e cidadãs que tem uma consciência do que está acontecendo e que querem se tornar ativos nesse processo, tem de apresentarem seus pensamentos, disputar com o poder da mídia hegemônica e das corporações. É um momento em que a gente consegue fazer uma inflexão de contracultura, de contraponto à tentativa que o modelo e o sistema têm de se readequar e reproduzir, vestido numa roupagem de economia verde, de sustentabilidade.
Posted: 05 Jun 2012 10:55 AM PDT
por Brent Millikan, da International Rivers
Barragem do Sobradinho (DF): a ideia de que usinas hidrelétricas são energia limpa ignoram uma série de consequências sociais e ambientais (foto: F. Laranjeira/CC BY-NC-SA 2.0)
Atualmente, existe uma tendência de aceleração da construção de grandes barragens para projetos hidrelétricos, especialmente nos chamados países em desenvolvimento da América Latina, sudeste da Ásia e África. No caso do Brasil, a polêmica usina de Belo Monte é apenas a ponta do iceberg na Amazônia, principal frente de expansão da indústria barrageira, onde o governo Dilma pretende promover a construção de mais de sessenta grandes barragens (UHEs) e mais de 170 hidrelétricas menores (PCHs) nos próximos anos.
No Brasil, o forte viés da construção de novas hidrelétricas na região amazônica, em detrimento de outras opções de investimento, como a eficiência energética  (na geração, transmissão e usos industriais, comerciais e domésticos de energia elétrica) e fontes renováveis (eólica, solar, biomassa) reflete a persistência do planejamento centralizado dentro do Ministério de Minas e Energia, como demonstra a falta de nomeação de representantes da sociedade civil e da universidade brasileira no Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), contrariando o Decreto número 5.793 de 29 de maio de 2006.  Alem disso, reflete a proximidade  ou, como dizem alguns, as “relações promíscuas”  entre o setor elétrico do governo comandado pelo grupo Sarney (PMDB), e grandes empreiteiras que se classificam entre os primeiros lugares do ranking de grandes doadores para campanhas eleitorais da base governista.
Uma tendência crescente é a caracterização de hidrelétricas por seus protagonistas como fonte de “energia limpa” para mitigar mudanças climáticas globais e estimular o chamado “crescimento econômico sustentável”. Essas tentativas de “esverdeamento” de hidrelétricas  ignoram uma série de graves consequências sociais e ambientais.  O represamento de rios, especialmente nos trópicos de baixa altitude, interrompe fluxos ambientais como inundações sazonais das zonas úmidas, provocando perdas significativas de habitats e da biodiversidade (incluindo espécies endêmicas e ameaçadas). As consequências da construção de barragens para populações indígenas e outras comunidades locais incluem o deslocamento compulsório, a intensificação de conflitos pela terra, a perda de recursos pesqueiros, a perda de agricultura de várzea, diminuição da qualidade e da quantidade da água, aumentos de doenças de veiculação hídrica (como a malária), a poluição por mercúrio, a interrupção do transporte de pequenas embarcações, a desintegração das comunidades e a perda de sítios de insubstituível valor cultural, religioso e histórico.
As consequências desastrosas
Em contraste com a propaganda de hidrelétricas como “energia limpa”, as barragens nos trópicos tipicamente envolvem significativas emissões de metano e gás carbônico (CO2) a partir de reservatórios e vertedouros, enquanto o desmatamento e as queimadas  associados à migração e especulação de terras estimulada pela construção de barragens – contribuem ainda mais para a sua ‘pegada de carbono’.
A lógica de maximização do lucro na indústria de barragens tem sido associada à  capacidade de seus protagonistas de essencialmente privatizar rios (apesar do seu status legal como bens públicos) e externalizar custos sociais e ambientais.  A tripla aliança da indústria barrageira, conforme descrito acima, tem conseguido empregar táticas como a subordinação de agências governamentais responsáveis pelo licenciamento ambiental, a falta de processos de consulta livre, prévia e informada junto os povos indígenas (contrariando o artigo 231 da Constituição Federal e acordos intenacionais, como a Convenção 169 da OIT) e a intervenção no judiciário para inviabilizar ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público e entidades da sociedade civil sobre graves violações dos direitos humanos e da legislação ambiental.
Outro grande atrativo econômico para a indústria de barragens tem sido os mega-empréstimos subsidiados do BNDES, assim como a facilidade de acesso a fundos de pensão de estatais  Petros, FUNCEF e Previ – e outros incentivos fiscais.  Nesse contexto, destaca-se a ausência, por parte do  BNDES e de outros financiadores, de prioridades estratégicas salvaguardas socio-ambientais capazes de evitar o financiamento de projetos como Belo Monte, associadas a mecanismos de transparência e responsabilização perante a sociedade brasileira.
A caracterização de hidrelétricas como “energia limpa”, reforçada por meio de campanhas publicitárias caríssimas, tem uma dupla finalidade: por um lado, facilitar o acesso a créditos de carbono e outros incentivos econômicos, e por outro, confundir a opinião pública, como contraponto às críticas sobre conseqüências sociais e ambientais de barragens destrutivas, incluindo violações dos direitos humanos, com insinuações sobre a falta de legitimidade de movimentos de atingidos e outros críticos.
Barragens e Rio+20
Nos preparativos para a Rio+20, houve praticamente nenhuma discussão sobre a pegada social e ambiental dos projetos de barragens existentes e as possíveis implicações de uma onda sem precedentes de construção de barragens em todo o mundo.  Ademais, a caracterização de barragens como “energia limpa” para uma economia verde que parece fazer parte de uma tendência para “soluções de mercado” definido pelos interesses dos principais atores do setor privado, onde a relevância dos direitos humanos, políticas públicas e das instituições democráticas tem sido cada vez mais menosprezada.
Sem dúvida, reverter esse quadro e democratizar o debate sobre barragens e a política energética, sob uma ótica de justiça ambiental e da convicção de que outro modelo de desenvolvimento que ainda é possível, merece destaque na atuação da sociedade civil na Rio+20.

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